Alain Caillé*, professor de sociologia na universidade Paris-Ouest-La Défense e um dos fundadores da Revue du M.A.U.S.S. (Movimento anti-utilitarista nas ciências sociais).
Em 1797, Thomas Paine, o principal defensor e teórico dos direitos do homem, dedica ao Diretório uma sátira cuja argumentação continua mais atual que nunca. Questionando-se se “o estado de sociedade… aumentou ou diminuiu a felicidade da raça humana em geral”, ele conclui que a questão política primeira é saber como tornar a civilização preferível ao estado de natureza aos olhos da maior parte dos seres humanos. Quem pode duvidar que esta também será a questão primeira do século XXI: como evitar que a parte da humanidade tornada absolutamente pobre enquanto a outra parte será sempre mais rica, não prefira sistematicamente o “estado de natureza”, ou seja, a guerra de todos contra todos, ao estado de sociedade?
Além das múltiplas respostas particulares possíveis a este desafio, é importante compreender o problema assim colocado em toda sua generalidade. Ele reside, provavelmente, no fato que os fundamentos de nossa concepção herdada da democracia se revelam cada vez mais inadequados ao estado do mundo globalizado. Estes fundamentos utilitaristas se organizam à partir da questão: “Para que isso (me) serve?”. Desde então, a democracia é vista como o fruto de uma livre associação entre indivíduos mutuamente indiferentes, todos buscando maximizar sua vantagem individual. O objetivo é a conquista da maior felicidade para a maioria, e o meio é o crescimento econômico.
Esta interpretação utilitarista da democracia traz três sérios problemas:
1) À medida que o ideal democrático se mundializa, ele torna mais e mais insuportáveis a desigualdade e a assimetria entre os antigos dominantes ocidentais – que são, muitas vezes, os antigos colonizadores – e os outros países, nações, culturas ou civilizações. Sem um reconhecimento da igual dignidade de todos os povos e todas as culturas, sem dúvida mais fácil falar que fazer, não se evitará a guerra de todos contra todos.
2) A aceitação da democracia de mercado foi largamente condicionada por um crescimento econômico sem precedentes que oferecia à todos a perspectiva de uma mobilidade social ascendente. Ora, no Ocidente as molas impulsoras deste grande crescimento são bastante quebradiças. A temível questão será saber se o ideal regulador democrático poderá seguir perene face a um crescimento fraco ou quase nulo.
3) Enfim, todo o mundo vê perfeitamente bem que lá onde a dinâmica do crescimento segue forte, nos BRIC (acrônimo para Brasil, Rússia, Índia e China) e nos países emergentes, nada garante que esta será fator de uma democratização efetiva e perene. E, sobretudo, tudo leva à crer que esta dinâmica apenas será possível por um tempo relativamente breve, ao preço e em razão de uma degradação dramática e irreversível da ecosfera. Sabe-se que seriam necessários muitos planetas para tornar possível a universalização do padrão de vida ocidental.
Tudo isto se resume em uma questão dramaticamente simples: a esperança utilitarista nutrida pelo Ocidente durante séculos terá sido a da superação do conflito entre os homens através do crescimento da prosperidade material. Um tal crescimento sem limites torna-se cada vez mais problemático: saberíamos, na ausência do crescimento infinito, encontrar os meios para viver juntos, democraticamente, uma vida digna, sem nos massacrar uns aos outros?
O que poderia então significar o projeto de encontrar na democracia fundamentos não-utilitaristas, anti-utilitaristas ou supra-anti-utilitaristas? Em Ensaio sobre a Dádiva (1924), Marcel Mauss estabelece que as sociedades arcaicas não se baseavam, de forma alguma, no mercado, na troca, na compra, na venda, no contrato, mas sobre aquilo que ele chama a tríplice obrigação de dar, receber e devolver. Sobre a obrigação, para explicar de uma outra forma, de magnificamente rivalizar em generosidade para ser reconhecido como plenamente humano. O que Marcel Mauss expõe é, então, uma concepção política e recíproca do dom. O dom – ou melhor, o desafio do dom – é este operador paradoxal que permite aos guerreiros transformar os inimigos em aliados, de passar da guerra à paz, e logo, complementarmente, da morte e da esterilidade à vida e à criatividade. Se o dom tem esta vertente pacificadora, é porque simboliza o reconhecimento de que os homens em conflito se dão um valor humano recíproco. Ele afirma que antes de produzir e trocar bens materiais úteis, é preciso começar fazendo a paz, ao acordar-se mutuamente um reconhecimento primeiro incondicional.
É isto o que uma ideologia política de um novo tipo, que é possível identificar provisoriamente sob o rótulo de “convivialismo”, deve aprender a fazer. Liberalismo, socialismo ou comunismo terão sido modalidades de uma filosofia política utilitarista, fazendo do crescimento indefinido da prosperidade material a resposta por excelência à aspiração democrática. O convivialismo traz a questão de saber como “viver bem juntos” e como dar vida à democracia mesmo que não haja um crescimento econômico contínuo. Ele se choca diretamente, então, com a questão crucial de nosso tempo, que é a dos meios de lutar contra a desmesura, a arrogância: como a humanidade pode aprender a se auto-limitar? O princípio base do convivialismo e da luta contra a ilimitação consiste na afirmação da “comum humanidade” e da “comum socialidade” de todos os seres humanos. Levar à sério este princípio implica na subordinação de toda medida política em respeito prioritário à dignidade humana, material e moral. O princípio de comum humanidade tem dois correlatos necessários: evitar que alguns recaiam em um estado de sub-humanidade; e que outros não aspirem a um estado de supra-humanidade.
Concretamente, o primeiro correlato se reúne à proposição desenvolvida por Thomas Paine em sua sátira. O único meio, escreveu ele, de converter a imensa maioria dos humanos à certeza de que a civilização é preferível ao estado de natureza é lhes concedendo, sem condições, um rendimento mínimo que os permita escapar da miséria. Generalizemos: em uma sociedade convivial à edificar, a fonte primeira da legitimidade dos Estados e dos governos residirá em sua capacidade de assegurar efetivamente aos cidadãos as condições materiais para sua existência de base, proporcionais à situação geral do país ou da região, quaisquer que sejam sua raça, sua religião ou suas crenças.
Simetricamente, a primeira medida a tomar para lutar contra o espírito de desmesura que se abateu sobre o mundo nestes últimos trinta anos é colocar que nenhum ser humano está autorizado a gozar de riquezas potencialmente infinitas. Este propósito não é, em si, portador de nenhum igualitarismo radical ou dogmático. Caberá ao debate democrático determinar quais as margens de riqueza e de rendimento desejáveis e aceitáveis. Porém, para se convencer que existe uma margem basta constatar que a diferença de rendimento entre os cem empresários americanos mais bem pagos e seus empregados de base foi multiplicada por 25 desde 1970. Imaginemos, então, que nos países ocidentais, o retorno mais rápido possível às normas de igualdade-desigualdade que ainda prevaleciam nos anos 70 deverá se tornar uma prioridade absoluta.
Apenas a afirmação do princípio incondicional de comum humanidade e a instituição conjunta de um rendimento mínimo e um rendimento máximo pode nos dar verdadeiras condições de evitar a dupla catástrofe que nos espreita: a de uma degradação dramática e irreversível do ambiente natural e a do desencadeamento de uma guerra de todos contra todos.
Fonte: www.jornaldomauss.org