José Guilherme Cantor Magnani
Professor do Departamento de Antropologia – USP
RESUMO: Este artigo repassa, em Tristes trópicos, as observações de Lévi-Strauss sobre o tema da cidade, desde as primeiras impressões quando de sua chegada ao Brasil, passando pela “etnografia dos domingos” na capital paulistana, o surgimento das novas cidades no norte do Paraná, até, finalmente, as multidões em espaços urbanos da Índia, pólo que o leva a estabelecer comparações com as formas características do processo de urbanização no Novo Mundo. Tomando sua leitura como um exercício de análise, o artigo conclui refletindo sobre a oportunidade de contar com categorias que permitam captar, a partir da antropologia, a dinâmica urbana contemporânea.
PALAVRAS-CHAVE: cidade, antropologia urbana, categorias analíticas, metrópole.
Quando se entra em contato com a obra de Lévi-Strauss através de Tristes trópicos, ainda têm uma especial sonoridade para ouvidos nativos as referências feitas a espaços como a rua Florêncio de Abreu, o bairro de Perdizes e o Pacaembu, a avenida São João, o Vale do Anhangabaú, a avenida Paulista e muitos outros, tão familiares e conhecidos dos moradores da cidade de São Paulo. Tais referências, mas principalmente as observações sobre a presença de migrantes estrangeiros nos arredores da cidade, a dinâmica de mercados populares com seu artesanato e algumas festas tradicionais fazem parte do que o próprio Lévi-Strauss então chamou de “etnografia dos domingos”. Conforme depoimento prestado anos mais tarde a Didier Eribon, lembra que suas expedições às tribos indígenas tiveram início
“a partir do primeiro ano letivo. Em vez de voltar para a França, minha mulher e eu fomos para o Mato Grosso, para as aldeias cadiveu e bororo. Mas eu já tinha começado a fazer etnologia com os meus alunos: sobre a cidade de São Paulo e sobre o folclore dos arredores, do qual minha mulher se ocupava mais especificamente”. (Lévi-Strauss & Eribon, 1990: 32)
No entanto, logo após aquelas observações iniciais sobre a cidade, sua dinâmica e tipos característicos, entremeadas por outras tantas frases de efeito nem sempre lisonjeiras, mas continuamente lembradas – do tipo “as cidades do Novo Mundo passam diretamente à decrepitude sem se deterem no antigo” –, o livro logo encontra e assume seu verdadeiro filão, proporcionado pelo primeiro contato do jovem pesquisador com as sociedades indígenas. No meio do caminho, entretanto, Lévi-Strauss deu uma parada para contemplar os efeitos da urbanização no interior paulista, esboçar algumas regras subjacentes ao processo de implantação de novas cidades no norte do Paraná e finalmente, já do outro lado do mundo, estabelecer comparações com cidades, mercados, tipos humanos e multidões da Índia e Paquistão.
Ainda que tais notas não tenham vindo a fundar uma linha de reflexão mais sistemática sobre o tema, diferentemente do que ocorreu com seus insights a respeito dos Cadiveo, Bororo e Nhambiquara, merecem destaque pela agudeza das percepções, pela trama dos contrapontos, pelo alcance do olhar; trata-se de fino exercício que, fossem outras as circunstâncias, talvez tivesse dado início a alguma fecunda linhagem de estudos urbanos. Mas, como afirmou ao jornalista Ulderico Munzi, do Corriere della Sera, em 1993, ” eu fiz uma escolha, a de interessar-me por coisas longínquas, no espaço e no tempo”.
I
O exercício começa com uma rápida análise do processo de expansão da fronteira no interior do Estado de São Paulo, seguindo a trilha das transformações econômicas e formas de ocupação: o olhar atento identifica as alterações na toponímia, as mudanças na importância e função de povoados (pousos, boca do sertão) e de tipos de articulação viária – os portos de lenha, registros, estradas francas, estradas muladas e boiadas.
Mas é o espetáculo do surgimento de novas cidades, a partir do nada, no coração da floresta, o que mais o impressiona. Aquele tom blasé das primeiras observações, certamente tributário de um olhar ainda acostumado à vetustez de conjuntos arquitetônicos de dez séculos, e que por isso vê as cidades do Novo Mundo com cara de acampamento ou montagem provisória, cede lugar à busca de princípios explicativos para um fenômeno mais radical, flagrado em seu nascedouro.
No norte do Paraná o processo de colonização, à época da estada de Lévi-Strauss, estava multiplicando cidades ao longo de um tronco central rodo-ferroviário: a partir de clareiras rasgadas em meio à selva exuberante, já haviam surgido Londrina, depois Rolândia, Arapongas e outras mais. No início eram apenas umas poucas casas de madeira, algumas de troncos falquejados, seguindo técnicas construtivas dos imigrantes – principalmente da Europa Central – embasbacados com a fertilidade da terra roxa que as derrubadas iam pondo à mostra e à sua disposição. Mas não era uma ocupação desordenada: desde o primeiro momento pautava-se por alguns princípios simples, geométricos, aparentemente neutros.
Misteriosos elementos, diz Lévi-Strauss, responsáveis por esses quadriláteros onde as ruas são todas iguais, em ângulo reto; no entanto, algumas eram centrais, outras periféricas, estas perpendiculares à linha ferroviária ou à estrada, aquelas, paralelas. Por sobre a grade das combinações possíveis, distribuíam-se as conhecidas funções urbanas do comércio, dos negócios, da moradia e dos serviços públicos: umas situavam-se preferencialmente no sentido do tráfego enquanto outras procuravam as transversais. Um segundo princípio marca as linhas da ordem e da desordem e rege a distribuição da abundância e da carência: é o que se segue à direção leste/oeste. “Há muito deixamos de adorar o sol”, afirma ele, “mas a persistência dessa orientação reveste-se de atualidade”. Se não explica a variabilidade dos comportamentos individuais, termina produzindo, por decantação, uma unidade maior:
“a vida urbana apresenta um estranho contraste. Embora represente a forma mais completa e requintada da civilização, em virtude da concentração humana excepcional que realiza em espaço reduzido e da duração de seu ciclo, precipita no seu cadinho atitudes inconscientes, cada uma delas infinitesimal mas que, devido ao número de indivíduos que as manifestam do mesmo modo e em grau idêntico, se tornam capazes de engendrar grandes efeitos. Como exemplos, o crescimento das cidades de leste para oeste e a polarização do luxo e da miséria segundo este eixo, que se torna incompreensível se não reconhecermos esse privilégio – ou essa servidão – das cidades que consiste, à maneira dum microscópio e, graças ao aumento que lhe é peculiar, em fazer surgir na lâmina da consciência coletiva o borbulhar microbiano das nossas ancestrais mas sempre vivas superstições. Tratar-se-á, de resto, realmente, de superstições? (Lévi-Strauss, 1981: 116)
Eis aí, em concisa enunciação, uma verdadeira fórmula de cidade. Antecipando argumentos de “O Pensamento Selvagem”, Lévi-Strauss sustenta que o espaço possui seus próprios valores, assim como os sons e os perfumes têm cores e os sentimentos um peso:
“Esta procura de correspondência não é um jogo de poeta nem mistificação, mas (… ) oferece para o cientista o terreno mais novo e aquele cuja exploração lhe pode ainda trazer ricas descobertas. (…) os mitos e os símbolos do selvagem devem surgir aos nossos olhos, senão como uma forma superior de conhecimento, pelo menos como a mais fundamental, a única verdadeiramente comum, constituindo o pensamento científico simplesmente a ponta mais acerada da mesma: mais penetrante, sem dúvida, porque aguçada como se fosse amolada na pedra dos fatos mas à custa duma perda de substância, dependendo a sua eficácia do poder de penetrar suficientemente fundo para que o corpo da ferramenta siga complemente a ponta”. (Lévi-Strauss, 1981: 116-17)
A forma da aldeia bororo e sua íntima relação com a organização social (que seriam mostradas páginas adiante); a mandala que prefigura em desenho o traçado da cidade e determina sua implantação concreta; o gesto do centurião romano com sua groma, traçando no solo os cardines e decumani que fundam mais uma urbs¸ após a devida consulta aos augures; e finalmente o projetista inclinado sobre sua prancheta são algumas imagens que até podem ser dispostas numa linha diacrônica mas que pertencem a um mesmo conjunto paradigmático.
“Não é portanto apenas de maneira metafórica que é possível comparar — como se fez muitas vezes — uma cidade a uma sinfonia ou a um poema; são objetos de natureza idêntica. A cidade, talvez mais preciosa ainda, situa-se na confluência da natureza e do artifício. Congregação de animais que encerram a sua história biológica nos seus limites, modelando-a ao mesmo tempo com todas as suas intenções de seres pensantes, a cidade provém simultaneamente da procriação biológica, da evolução orgânica e da criação estética. É ao mesmo tempo objeto de natureza e sujeito de cultura; indivíduo e grupo; vivida e sonhada; a coisa humana por excelência”. (Lévi-Strauss, 1981: 117)
A visita a Goiânia em 1937 e as impressões do empreendimento, em especial da única edificação que então sobressaía na planície, o grande e desgracioso hotel, fornecem-lhe o gancho para a segunda parte do exercício. A bordo de um tapete voador, termo que emprega como intertítulo em Tristes trópicos, Lévi-Strauss deixa o planalto central brasileiro em direção à Índia e ao Paquistão. A comparação agora será numa perspectiva macro, entre unidades maiores, afastadas no tempo e no espaço. A visão das ruínas das antigas cidades de Mohenjo-Daro e Harappa, revelando o plano urbanístico em retícula, evoca similares modernos:
“Apraz-nos imaginar que no termo de 4 a 5 mil anos de história, um ciclo foi concluído; que a civilização urbana, industrial, burguesa, inaugurada pelas cidades dos Indus, não diferia muito, na sua inspiração mais profunda, dessa que estava destinada, após uma longa involução na crisálida européia, a atingir a plenitude do outro lado do Atlântico. Quando ainda era jovem, o mundo mais Antigo esboçava já o rosto do Novo”. (Lévi-Strauss, 1981: 124)
Mas é o impacto das multidões que lhe oferece o contraste mais marcante e novas pistas para comparação: nas ruas apinhadas de Calcutá o séquito de serviçais e suas ofertas, a procissão de pedintes e suas súplicas sustentam o ininterrupto e deprimente espetáculo de uma sub–humanidade. A cidade, qualificada poucas linhas acima como “forma mais completa e requintada da civilização”, aqui emerge manchada pela imundície e degradação, produzindo no antropólogo não mais o estranhamento esperado e metodologicamente controlado, mas o espanto e até o constrangimento.
“O europeu que vive na América tropical tem problemas. Observa as relações originais existentes entre o homem e o meio geográfico; e as próprias formas de vida humana oferecem-lhe, sem cessar, temas de reflexão. Mas as relações entre as pessoas não revestem formas novas; são da mesma natureza daquelas que sempre o rodearam. Pelo contrário, na Ásia meridional, parece-lhe estar além ou aquém daquilo que o homem tem direito de exigir do mundo ou do homem. A vida cotidiana parece ser um permanente repúdio da noção de relações humanas (:128).”
É desse afastamento mais extremo, contudo, que vai emergir um novo significado e é aí que vai descobrir uma inusitada manifestação de humanidade. A imagem do artesão, entretido com umas poucas ferramentas e escasso material, a exercer na própria rua o ofício de onde retira a parca subsistência para si e para os seus, fá-lo exclamar: “E, todavia, são precisas tão poucas coisas, aqui, para criar a humanidade! Pouco espaço, pouca comida, poucos utensílios, pouca alegria”.
Paradoxalmente, parece haver muita alma… Alma que uma parte do Ocidente cansada do consumo e saturada pela abundância vem procurar nas palavras e exemplos de esquálidos bikhus, gurus semi despidos e toda espécie de renunciadores, na recente onda de retorno a formas de espiritualidade há muito esquecidas neste outro lado do mundo.
O exercício finalmente chega a seu termo. Lévi-Strauss considera que o problema levantado pela confrontação entre a Ásia e a América tropicais continua sendo o da multiplicação humana num espaço limitado. Diante da situação de sociedades que se tornam demasiado numerosas, alerta para um tipo de perigo: a sedução de uma saída simplista, aquela que consiste em recusar qualidade humana a uma parte da espécie.
“Aquilo que me assusta na Ásia é a imagem do nosso futuro, do qual ela constitui uma antecipação”, conclui, numa sombria antevisão. Sua última imagem, contudo, é da América indígena e seu fugidio reflexo “de uma era em que a espécie se encontrava à medida do seu universo e em que se verificava permanentemente uma relação adequada entre o exercício da liberdade e os sinais desta” (Lévi-Strauss, 1981: 143).
II
Que diria então Lévi-Strauss diante do espetáculo de ajuntamentos humanos já não de 1,5 ou 2 milhões, mas de 10 milhões de pessoas, como é o caso de alguns dos maiores centros urbanos contemporâneos? Ainda que este não seja o tipo de questão que lhe interesse (como tem reiterado em entrevistas mais recentes), à primeira vista parece improvável que pudesse continuar afirmando que a cidade “é a coisa humana por excelência”, tendo-se em conta os rumos e conseqüências do processo de urbanização em curso e principalmente o teor das análises sobre o fenômeno.
Conforme desenvolvi em outro texto (Magnani, 1999), uma parte dessas análises e os diagnósticos correspondentes enfatizam os aspectos desagregadores do processo – tais como o colapso do sistema de transporte, as deficiências do saneamento básico, a falta de moradia, a concentração e má distribuição dos equipamentos, o aumento dos índices de poluição, da violência, do desemprego. Com base em variáveis e indicadores sociológicos, econômicos e demográficos, este é o quadro geralmente aplicado às grandes cidades do mundo subdesenvolvido.
Uma outra visão, geralmente referida às metrópoles do Primeiro Mundo, projeta cenários marcados por uma feérica sucessão de imagens, resultado da superposição de signos, simulacros, espaços interativos, redes e pontos de encontro virtuais. Esta é a cidade que se delineia a partir da análise dos semiólogos, arquitetos, críticos pós-modernos, identificada como o protótipo da sociedade pós-industrial.
No primeiro caso, mostra-se uma linha de continuidade em que os fatores de crescimento, desordenados, terminam por produzir inevitavelmente o caos urbano; na segunda, enfatiza-se a ruptura, conseqüência de saltos tecnológicos que tornam obsoletas não só as estruturas urbanas anteriores como as formas de comunicação e sociabilidade a elas correspondentes; o caos, aqui, é semiológico. Uma, fruto do capitalismo selvagem; a outra, identificada com o capitalismo tardio.
Ainda que por motivos diferentes, essas duas perspectivas – polarizadas para efeito comparativo e de contraste – levam a conclusões semelhantes no plano da cultura urbana: deterioração dos espaços e equipamentos públicos com a conseqüente privatização da vida coletiva, segregação, evitação de contatos, confinamento em ambientes e redes sociais restritos.
Não há como negar a existência de tais características e seus fatores determinantes, comprovados não só por tabelas, índices e projeções, como também pela experiência do dia a dia das grandes cidades. Mas, isso é tudo? Esse cenário degradado esgota o leque das experiências urbanas? Não seria possível reconhecer, em algum plano, indícios daquilo que Lévi-Strauss vislumbrou e chamou de “forma complexa e requintada de civilização”, a partir de outro foco de análise e lançando mão de outros instrumentos de pesquisa?
Como os da etnografia, por exemplo, que, como se sabe, elaborou seus métodos de investigação inicialmente no estudo de sociedades de pequena escala dedicadas à coleta, caça, agricultura de subsistência. O modo de vida típico dessas sociedades, contudo, tem como base o acampamento ou a aldeia, mas não a cidade; por conseguinte, as estratégias de pesquisa da etnografia à primeira vista não a credenciariam para deslindar as complexidades da sociedade urbano-industrial (e pós-industrial) contemporânea. No entanto, seu modo de operar apresenta algumas características que talvez permitam captar processos cuja dinâmica passaria desapercebida, se enquadrados exclusivamente pelo enfoque dos grandes números. Numa linha interpretativa, por exemplo, a etnografia tem como objetivo a busca do significado da ação social é a partir de
“material produzido por um trabalho de campo quase obsessivo de peneiramento, a longo prazo, principalmente (embora não exclusivamente) qualitativo, altamente participante e realizado em contextos confinados, que os megaconceitos com os quais se aflige legitimamente a ciência social contemporânea – modernização, integração, conflito, carisma, estrutura, significado – podem adquirir toda a espécie de atualidade sensível que possibilita pensar não apenas realista e concretamente sobre eles, mas, o que é mais importante, criativa e imaginativamente, com eles.”
(Geertz, 1978: 33-4)”
É esse particular tipo de contato, confronto, diálogo com o “outro” que constitui o fundamento da etnografia. Eles – que nos estudos antropológicos clássicos são os nativos de algum grupo ou aldeia distante – no contexto das grandes cidades são os múltiplos, variados e heterogêneos conjuntos de atores sociais que nelas vivem, sobrevivem, trabalham, circulam, usufruem de seus equipamentos ou deles são excluídos. Tomando como ponto de partida a perspectiva de cada um desses grupos é que se pode aceder a padrões de significado que ordenam comportamentos.
Não se pode perder de vista, porém, o perigo que estudos exclusivamente formatados por esta linha de análise podem acarretar: o de não sair do âmbito dos contextos nativos particularizados. Para estabelecer mediações entre o nível das experiências dos diferentes atores e o dos processos ou planos mais abrangentes, é necessário operar também em outro registro. Se se pensa na perspectiva estruturalista, contudo, cabe ter em mente a advertência do próprio Lévi-Strauss: “Nunca me ocorreu a idéia – que me parece extravagante – de que tudo na vida social esteja sujeito à análise estrutural (…) aqui e ali formam-se algumas ilhotas de organização. Minha história pessoal, minhas opções científicas fizeram com que me interessasse mais por elas do que pelo resto” (Lévi-Strauss & Eribon, 1990: 133).
Sua escolha pelos domínios do parentesco e do mito, coetâneos ao próprio homem, deixa claro ao menos duas condições para a viabilidade desse tipo de análise: a dimensão do corpus e a universalidade da ocorrência. Com relação ao fenômeno urbano, contudo, há que reconhecer que nem sempre a humanidade viveu em cidades e que nem todos moram nelas; só muito recentemente é que a urbanização tornou-se uma tendência mais geral, de forma que princípios porventura responsáveis por sua estruturação num nível mais profundo talvez ainda não tenham tido o tempo suficiente para decantar.
Quem sabe, porém, tenha chegado uma oportunidade, se não para uma análise estrutural em moldes clássicos, ao menos para um exercício na trilha de algumas pistas sugeridas por Tristes trópicos, com base na hipótese de que a atual abrangência da urbanização oferece uma compensação para sua ainda pouca profundidade temporal. Com efeito, projeta-se para a virada do milênio a superação da população rural pela urbana, quando também haverá 25 cidades com mais de 10 milhões de habitantes: são as megacidades 1. Por sua escala, estas últimas – entre as quais São Paulo – escapam às costumeiras distinções entre centro e periferia, área industrial e de serviços, zonas residenciais e de comércio, de circulação e lazer etc., postulando questões que desafiam instrumentos habituais de trabalho de planejadores e urbanistas.
E também os da antropologia. Como se sabe, há uma estreita relação entre a escala da aldeia e a especificidade de alguns métodos clássicos de pesquisa etnográfica que permitiam a Malinowski em seu “passeio matinal pela aldeia” e a Evans-Pritchard, “da porta da barraca”, observar a dinâmica da vida nativa em termos de totalidade. Esta perspectiva, que ainda subsistia no protótipo representado pela cidade medieval murada, com sua centralidade e contornos definidos – ou na típica cidade interiorana, no casos dos famosos “estudos de comunidade” –, desaparece quando se trata da escala metropolitana. Como mostra Habermas, as marcas da cidade ocidental que Weber descreveu – a cidade burguesa na Alta Idade Média – terminaram vinculando sua imagem e conceito a uma determinada forma de vida; esta, contudo, se transformou a tal ponto que:
“O conceito dela derivado já não logra alcançá-lo. Enquanto um mundo abarcável, a cidade pôde ser arquitetonicamente formada e representada para os sentidos. As funções sociais da vida urbana política e econômica, privada e pública, da representação cultural e eclesiástica, do trabalho, do morar, da recreação e da festa, podiam ser traduzidas em fins, em funções de utilização temporalmente regulada dos espaços configurados. Contudo, no século XIX a mais tardar, a cidade torna-se ponto de interseção de relações funcionais de outra espécie.” (1992:144)
Que dizer então da realidade das metrópoles contemporâneas, circunscritas não mais no horizonte de cada Estado nação, mas imersas em processos transnacionais descentrados nos quais, para uma determinada visão, já mencionada, parece ter-se perdido qualquer vínculo com referências territoriais significativas e nas quais a dinâmica se dá no terreno da virtualidade e do “não lugar”? No entanto, já nos anos 60, Lévi-Strauss, de certa forma, chamava atenção para o problema:
“a civilização ocidental, tornando-se cada dia mais complexa, e estendendo-se a toda a terra habitada, apresenta desde já em seu bojo esses desvios diferenciais que a antropologia tem por função estudar, mas que até agora não lhe era possível senão comparando civilizações distintas e longínquas.” (1962:26)
Se a antropologia, por conseguinte, não pretende abrir mão de refletir sobre essas novas formas de ajuntamento humano com sua dinâmica, problemas e possibilidades específicas, tem de pensar também novas linhas de enquadramento teórico e estratégias investigativas. Como essas cidades já não apresentam um ponto de referência nítido nem contornos definidos capazes de identificar uma centralidade e projetar uma imagem de totalidade, é preciso reconstituí-las, sob pena de se embarcar (e perder-se) na multiplicidade dos arranjos particularizados.
Em outros termos: se a cidade, tendo em vista a complexidade principalmente em sua escala metropolitana, já não constitui uma totalidade operacional, é preciso estabelecer mediações entre o nível das experiências dos atores e o de processos mais abrangentes, de forma a se obter, se não uma ordem, ao menos ordenamentos detectáveis em práticas específicas e comportamentos recorrentes. Daí a necessidade de contar com categorias que permitam uma articulação entre tais planos: esse tem sido o propósito do emprego das noções de pedaço, mancha, trajeto, circuito, pórtico, aplicadas a determinados campos como o lazer, práticas culturais, novas formas de religiosidade, entre outros 2.
Essas categorias possibilitam determinar os contornos do recorte escolhido – tal ou qual comportamento, prática, tendência – no cenário multifacetado da cidade como resultado da estratégia de pesquisa escolhida, ou seja, construída teoricamente. Seu rendimento e aplicabilidade residem no fato de permitirem a passagem (ou articulação) entre o plano da determinação sociológica (relações sociais intra e intergrupos) e aquele referido a arranjos espaciais recorrentes e visíveis na paisagem.
Desta forma, permitem recortar e trabalhar com totalidades “parciais”, universos autônomos (com regras próprias) mas não desvinculados da dinâmica mais geral da cidade, no interior dos quais efetivamente ocorre o exercício desta ou aquela prática através dos encontros, contatos, trocas e conflitos entre os freqüentadores.
Sem se perder de vista a dimensão das escolhas e usos vistos de perto, tem-se a garantia de um olhar de longe, capaz de registrar regularidades num plano mais abrangente. Para o nativo, elas constituem chaves de sentido 3: qual o habitué que não sabe distinguir quem é ou quem não é do seu “pedaço”? Qual o aficionado, seja um clubber, rapper, cineclubista ou neo-esotérico que desconhece as regras, possibilidades e conexões oferecidas por seu “circuito”? Qual o transeunte que não aperta o passo ao transpor algum “pórtico”, espaço liminar sujeito a normas que desconhece?
Para o analista, aquelas categorias constituem chaves de inteligibilidade de processos urbanos só aparentemente entregues ao acaso das escolhas individuais, aleatórias: sua implantação na paisagem da cidade segue determinada lógica. Desta forma logra-se recuperar a idéia já citada do “infinitesimal”, aduzida por Lévi-Strauss: “Embora represente a forma mais completa e requintada da civilização, em virtude da concentração humana excepcional que realiza em espaço reduzido e da duração de seu ciclo, (a cidade) precipita no seu cadinho atitudes inconscientes, cada uma delas infinitesimal mas que, devido ao número de indivíduos que as manifestam do mesmo modo e em grau idêntico, se tornam capazes de engendrar grandes efeitos”.
Quando uma iaô deposita a oferenda para seu orixá em determinada esquina da cidade, tal atitude pode ser creditada a fatores subjetivos, individuais: conveniência pessoal, proximidade, facilidade de locomoção. Contudo, a preferência por determinadas ruas, ou por uma área mais abrangente – constituindo, quem sabe, uma “mancha” – já levanta pistas para pensar a relação entre esta modalidade de prática religiosa e significados atribuídos a determinados espaços da cidade.
O mesmo pode ser aplicado a outra manifestação da religiosidade contemporânea: que um ou outro espaço neo–esotérico realize algum tipo de cerimônia para celebrar a ocorrência da lua cheia, tal fato pode ser explicado em razão de escolhas doutrinárias ou filosóficas desse centro. Mas quando se descobre que tal forma de celebração ocorre com regularidade ao longo do circuito “neo-esô”, independentemente dos (incontáveis) sistemas que servem de base a cada uma das instituições que o integram – de tal forma que já virou evento constante de um verdadeiro calendário –, pode-se supor que se está diante de uma recorrência de outra ordem.
E assim sucessivamente, com relação à ocupação de determinados espaços e áreas da cidade por grupos de jovens, por práticas esportivas, de consumo cultural, convivência, lazer etc.: estes e muitos outros comportamentos, atitudes e práticas – “infinitesimais” do ponto de vista das motivações de cada participante –, quando colocados em perspectiva e vistos de um certo ângulo, deixam entrever modelos, princípios classificatórios e de organização mais gerais.
Para captá-los, entretanto, é preciso situar o foco nem tão de perto que se confunda com a perspectiva particularista de cada usuário e nem tão de longe a ponto de distinguir a necessária totalidade, mas sob a forma de uma mancha borrada e desprovida de sentido.
1 Segundo dados apresentados pelo arquiteto e urbanista Jorge Wilheim, no ano 2025, 61% da população mundial estará vivendo em cidades, enquanto que em 1975 esta porcentagem era de 37% ( Boletim do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo, p. 7).
2 Ver Magnani & Torres, 1996.
3 A propósito dessa expressão “chave de sentido”e da próxima , “chave de intelegibilidade”, ver Augé (1994: 51).
Bibliografia
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1994 Não-lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade, Campinas, Papirus
Boletim do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo, ano XI, n. 55, maio/junho de 1999.
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1992 “Arquitetura moderna e pós-moderna”, in ARANTES, O. B. & ARANTES, P. Um ponto cego no projeto moderno de Jurgen Habermas, São Paulo, Brasiliense.
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MAGNANI, J. G. C. & Torres, L.
1996 Na metrópole: textos de antropologia urbana, São Paulo, Edusp.
ABSTRACT: This article reviews, in Tristes Tropiques, Lévi-Strauss’ observations about the theme of the city: his first impressions when he arrived in Brazil, his “Sundays ethnography” in São Paulo city, the birth of news cities in Paraná and the crowds in urban India; this last that conduced him to comparisons with the characteristics of the urban processes in the New World. Taking his reflections as an analysis exercise in an anthropological way, this article concludes suggesting some categories to think about the dynamic reality of the contemporaneous urban city.
KEY WORDS: city, urban anthropology, analytic categories, metropolis.
Fonte: www.scielo.br