Sheila Maria Ferraz Mendonça de Souza
Professora Doutora da Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz;
sferraz@ensp.fiocruz.br
Introdução
Como qualquer outra arqueologia, a bioarqueologia tem um forte componente indiciário. E como qualquer outra ciência indiciária ela vem sendo beneficiada enormemente pelas técnicas e métodos desenvolvidos a partir das últimas décadas do século XX. A possibilidade de olhar o microscosmos, detectar quimicamente o irrisório, ou provar o fìsicamente impensável, trouxe um novo impulso para o estudo dos remanescentes arqueológicos. Tendo começado no século XVIII como ciência embrionária entre a antropologia e a arqueologia (Souza, 1988), o que hoje entendemos como bioarqueologia deu seus primeiros passos classificando e identificando a morfologia dos ossos, principalmente do crânio. Já no início do século XX, graças à contribuição de Ernest Hooton (1930) , o olhar sobre os ossos ganhou nuances, tornando-se mais populacional e epidemiológico, e passou a dialogar com a mortalidade, os sinais de doenças, as variações dentro dos grupos de sexo, idade, posição social e assim por diante (Turner & Machado, 1983; Cohen & Armelagos, 1984; Souza, 1988; Larsen, 1997; Souza, Carvalho & Lessa, 2003).
Foi ainda no início do século XX que técnicas biomédicas complementares, como a histologia e a radiologia, permitiram evidenciar dimensões ocultas e de grande interesse para o diagnóstico em paleopatologia. Nomes como o de Marc Armand Ruffer contribuíram significativamente para o crescimento este campo adaptando técnicas médicas aos estudos de amostras arqueológicas (Ferreira, Reinhard & Araujo, 2008; Aufderheide & Rodriguez-Martin, 1998). A progressão científica e tecnológica, principalmente após a II Guerra Mundial, permitiu a rápida expansão transdisciplinar em arqueologia (Cunha, 1963). Mas a construção de novos paradigmas e a emergência da Nova Antropologia aproximou mais a antropologia das ciências biomédicas, na tentativa de construir um saber compartilhado e uma explicação biocultural (Angel, 1966; Buikstra & Cook, 1980). Como conseqüência, áreas como a paleoparasitologia, a paleobotânica, a zooarqueologia, a paleogenética e outras expandiram e aumentaram seu poder de investigação e explanação, e constituindo campos pioneiros cada vez mais sofisticados e inovadores (Wesolowski et al., 2007; Boyadjian, 2007; Ferreira, Reinhard & Araujo, 2008; Scheell-Ybert et al., 2003; Fernandes et al., 2008; Couri et al, 2009).
O desafio que acompanhou este movimento foi o de lidar com espaços de trabalho cada vez mais transdisciplinares ou interdisciplinares. Arqueólogos e bioarqueólogos passaram a ser desafiados por novas técnicas e domínios de saber, por interfaces cada vez mais especializadas. Profissionais com pouca, ou nenhuma, familiaridade com práticas arqueológicas, passaram a emitir opinião sobre pré-história ou arqueologia. Bioquímicos, biofísicos, químicos, físicos, geneticistas, botânicos e muitos outros profissionais aportam seus conhecimentos à arqueologia, contribuindo para a inferência. Muito embora essa aproximação seja ainda problemática, o desenvolvimento de discursos construídos a partir de diferentes olhares ajuda a interpretar indícios biológicos humanos do passado e estabelecer suas relações bioculturais.