José Ribamar Bessa Freire
Uma das chaves para entender o assassinato de Osama bin Laden talvez esteja no codinome ‘Geronimo’, escolhido para designar a missão norte-americana, formada por 79 membros da tropa de elite da Marinha, que entrou em território do Paquistão com quatro helicópteros ultra-sofisticados, invadiu a casa do ex-aliado da CIA, encontrou-o desarmado e o executou. Afinal, o que é que Gerônimo, chefe Apache do séc. XIX, tem a ver com essa história?
– “Nada. Isto é uma distorção da História. É um insulto e um erro que tenham usado esse nome para designar a operação” – protestou Harlyn Geronimo, bisneto do chefe Apache. Ele, que arriscou sua vida servindo à pátria na 2ª Guerra Mundial e na invasão ao Vietnã, pediu explicações do presidente Obama e exigiu que o nome Geronimo fosse retirado dos documentos oficiais referentes a essa operação.
O protesto familiar foi engrossado pelo atual líder Apache, Jeff Houser, que elogiou o sucesso da missão antiterrorista, mas em carta aberta ao presidente dos EUA, denunciou a associação entre “o símbolo heróico da resistência indígena no país ao símbolo do terrorismo internacional”. Segundo ele, isso reforça a imagem falsa, difamatória e estereotipada dos Apache, que foram tratados como selvagens com o “pretexto para a remoção forçada de suas terras”.
Vários líderes de organizações indígenas nos EUA também formalizaram suas queixas, quinta-feira passada, na Comissão de Relações Indígenas do Congresso Americano que trata dos “estereótipos racistas e das populações autóctones”. Eles exigiram que o presidente americano peça desculpas. Até agora, Barack Obama, que confraterniza com as tropas americanas, não deu qualquer resposta. Talvez porque ele concorde com os militares, para quem Geronimo e Osama são “dois renegados”. São mesmo?
Os Renegados
Fiz essa pergunta a Dee Brown, um americano que entende do assunto, não diretamente, mas consultando seu livro – Enterrem meu coração na curva do rio – publicado em 1970. Ele respondeu com o capítulo intitulado – O último Chefe Apache – que traz a biografia do guerreiro Goyaalé, nome indígena de Gerônimo (1829-1909).
Lá, ele descreve a resistência apache contra tropas mexicanas e americanas e conta como uma companhia de 400 soldados assassinou, em 5 de março de 1851, centenas de apaches desarmados, a maioria mulheres e crianças, entre as quais a mãe de Geronimo, sua mulher Alope e seus filhos.
Essa história foi reconstituída por Dee Brown, filho de um lenhador da Louisiana, quando trabalhou como bibliotecário no Ministério da Agricultura. Ele, que em sua infância havia brincado com crianças Choctaw, estava antenado para a questão indígena. Pesquisou no arquivo os documentos sobre o tema: relatórios governamentais, tratados, mapas, atas de conselhos e reuniões tribais com autoridades civis e militares, livros de pequena circulação e jornais alternativos que registraram o discurso dos índios. Concluiu que satanizaram o líder Apache:
– “Transformaram Geronimo num demônio especial, inventando histórias de atrocidades às dúzias e pedindo vigilantes para enforcá-lo, se o governo não o fizesse. A fuga do grupo de Geronimo através do Arizona foi o sinal para uma torrente de boatos intensos. Os jornais publicaram grandes manchetes: OS APACHES FUGIRAM! A simples palavra “Geronimo” tornou-se um grito de sangue”.
O autor se apoiou em declarações não de qualquer antropólogo comunista, mas do próprio general George Crook, enviado pelo Exército Americano para caçar Geronimo. Depois de conviver com os índios, o general mudou de opinião: “É muito freqüente jornais fronteiriços disseminarem toda espécie de exageros e falsidades sobre os índios, o que é copiado em jornais de elevado conceito e ampla circulação em outras partes do país, enquanto o lado índio do caso é raramente divulgado. Desta forma, as pessoas ficam com idéias falsas sobre a questão. Então, quando há o clímax, a opinião se volta contra os índios”.
Ouvir o “outro lado”. O general Crook queria que os índios fossem ouvidos, para evitar a satanização deles. Por isso, foi demitido pelo Ministério da Guerra e substituído pelo general Nelson Miles. O novo comandante das tropas organizou, em abril de 1886, uma espécie de “Operação Osama”. Mobilizou 5 mil soldados – um terço da força de combate do Exército – e milhares de milicianos civis armados, montou um custoso sistema de heliógrafos para enviar mensagens e, num clima de histeria coletiva, atacou os Apache que na época já estavam reduzidos a um “exército” de… 24 guerreiros.
A rendição
Foi aí, então, que Geronimo se rendeu, em setembro de 1886, cansado de lutar durante trinta anos contra dois exércitos: o mexicano e o americano. Na época, ele tinha seis esposas: Chee-hash-kish – com quem teve dois filhos – Nana-tha-thtith que lhe deu outro filho, Zi-yeh, She-gha, Shtsha-she e Ih-Tedda. Algumas delas, entre as quais a última, estava com Geronimo e foi com ele aprisionada…
Geronimo, suas mulheres, seus filhos e os 24 guerreiros Apache foram encarcerados. Ele permaneceu prisioneiro do governo americano durante 23 anos, quando morreu, em 1909, vítima de uma pneumonia, na prisão de Fort Sill, em Oklahoma, em cujo cemitério foi enterrado. Seus ossos foram, posteriormente, roubados por membros da sociedade secreta Skull and Bones (Crânio e Ossos) e levados para sua sede em New Haven, onde seu crânio podia ser visto dentro de um pote de vidro.
O historiador Marc Wortman, que fez essa revelação, se apoiou numa troca de correspondência entre membros da sociedade secreta – da qual fazia parte Prescott Bush, avô do ex-presidente George W. Bush – especialmente numa carta datada de junho de 1918 que ele encontrou nos arquivos da biblioteca de Yale. Agora, Harlyn Geronimo está processando o governo americano, pedindo que os ossos do seu bisavô sejam enterrados na sua terra natal, perto do rio Gila, no Novo México.
O livro de Dee Brown, que faz a biografia de Geronimo, começa com a grande marcha dos Navajo, em 1860 e termina com o massacre aos Sioux, trinta anos depois, nas margens de um riacho chamado Wounded Knee, com o exterminio de homens, mulheres e crianças. Ele conta como, em três décadas, quando a população americana pulou de 31 milhões para 62 milhões de habitantes, colonos inescrupulosos, amparados pelo próprio governo, invadiram e roubaram as terras indígenas, encontrando forte resistência por parte dos índios, que lutaram em defesa de seu território.
Nesse período se consolidou a política de remoção indígena do governo americano, que consistiu em espoliar os índios de suas terras, removendo-os para o oeste do rio Mississipi, formando o Território Indígena que deu origem ao atual estado de Oklahoma. Essa migração forçada, que semeou dor, desespero e morte, foi denominada pelos índios de ‘trilha das lágrimas’.
A rota da dor
Dee Brown, que publicou fotos dos chefes indígenas encontradas no Instituto Smithsoniano, conta como reconstruiu esse caminho: “Embora os índios que viveram durante esse funesto período tenham desaparecido da face da terra, milhões de suas palavras foram conservadas e estão contidas nos registros oficiais. Com todas essas fontes da quase esquecida história oral, tentei armar uma narrativa da conquista do Oeste Americano segundo suas vítimas, usando suas palavras sempre que possível”
Às vezes, o autor reproduz falas de oficiais do exército americano, como as do capitão Nicholas Hodt: “Os navajo, squaws e crianças correram em todas as direções e foram atacados com tiros e baionetas. Vi, ali, um soldado matando duas criacinhas e uma mulher. Ordenei imediatamente que o soldado parasse. Ele olhou, mas não obedeceu a minha ordem. Corri, mas não consegui impedi-lo de matar as duas crianças inocentes”.
Lendo o livro de Dee Brown, é possivel concluir que a Missão Osama bin Laden podia ter sido chamada com qualquer outro nome de dezenas de chefes indígenas: Geronimo, Antílope Branco, Nuvem Vermelha, Touro Sentado… Todos eles foram igualmente massacrados num processo em que não foram ouvidos.
Um oficial que cavalgava atrás do coronel Chivington conta que viu Antílope Branco, desarmado, se render, com as mãos para o alto, dizendo: Parem! Parem! “Falava isso num inglês tão bom quanto o meu”. Cruzou os braços até ser atingido. Os sobreviventes dos Cheyenne disseram que Antílope Branco cantou a canção da morte antes de expirar: ‘Nada vive muito tempo / só a terra e as montanhas’.
O corpo de Antílope Branco, como o de bin Laden, também não podia ser mostrado. Outro oficial, o capitão Soule, testemunhou: “Vi o corpo de Antilope Branco com os genitais cortados e ouvi um soldado dizer que iria fazer uma bolsa de fumo com eles”.
Diante de tanta barbárie, o cacique Sioux Sinte-Galesha criticou a guerra como forma de solucionar conflitos e apontou para a diplomacia: “Nossa vontade é viver aqui, em nossa terra, pacificamente, e fazer o possível pelo bem-estar e prosperidade de nosso povo. Quando povos entram em choque, é melhor para ambos os lados reunirem-se sem armas e conversar sobre isso, é encontrar algum modo pacífico de resolver”.
Um dos sobreviventes do massacre foi o cacique sioux Touro Sentado, que no verão de 1885 fez parte do Show do Oeste Selvagem de Buffalo Bill, viajando pelos Estados Unidos e Canadá. Ele dava as moedas que recebia às crianças pobres e famintas não indígenas e não entendia como a sociedade de consumo, que produzia tantos bens, podia ser tão indiferente aos seus pobres.
“O homem branco sabe como fazer tudo – disse – mas não sabe como distribuir isso”.
O que é que Osama bin Laden tem a ver com Geronimo e outros chefes indígenas? Os terroristas da Al Qaeda, que mataram inocentes, semeando a dor e o luto, devem estar orgulhosos, pegando carona no nome de um guerreiro que lutou por seu povo e por sua terra. De todos os modos, o tempo vai mostrar que o terrorismo de Estado praticado pelo governo americano, como forma de combater o outro terrorismo, é uma forma truculenta, burra e ineficaz e que os índios têm razão quanto apontam o caminho da conversa e da negociação.
Fonte: www.taquiprati.com.br