Do dinheiro sujo ao limpo: indagações sobre a moral da economia

Entre as contribuições que a interdisciplinaridade pode oferecer à “Análise Jurídica da Política Econômica” (AJPE) estão as da Antropologia Econômica.

Neste campo, vale a pena mencionar as discussões em torno do contraste entre as economias da “dádiva” (uma referência ao trabalho seminal do antropólogo Marcel Mauss) e a economia de mercado, ou capitalista. Uma das obras que explora tais discussões é o livro Money and the Morality of Exchange [A Moeda e a Moralidade da Troca], organizado por J. Parry e M. Bloch (Cambridge University Press, 1989). O livro contém diversos estudos etnográficos sobre o uso da moeda em diversas sociedades e culturas.

No ensaio introdutório, os organizadores (Bloch e Parry) procuram resumir o que os estudos, reunidos no livro, enfatizam. Uma das idéias centrais da coletânea, segundo os organizadores, é a diferença que pode ser estabelecida entre: (a) um ciclo de trocas de curto prazo, fixado na “aquisição” e num distanciamento em relação à representações ideológicas da moralidade coletiva; e (b) um ciclo de trocas de longo prazo, voltado para a “reprodução da ordem cósmica e social”.

Os autores (Bloch e Parry) rejeitam os argumentos existentes na literatura, que separam radicalmente o tradicional e o não-monetário, de um lado, e o monetário e o moderno, de outro; ou a “dádiva” de um lado e a “mercadoria” de outro. Coerentemente com isto, propõem que os dois “ciclos de trocas”, já mencionados, operam simultaneamente em sociedades usualmente consideradas “tradicionais”.

Nas palavras dos autores (p. 25):

“[Nos] casos das Ilhas Fiji e da Malásia, […] o dinheiro moralmente equívoco, derivado dos ciclos de trocas de curto prazo, é transformado por uma simples operação simbólica em um recurso positivamente benéfico que sustenta a ordem ideal de uma comunidade estável (unchanging community). Praticamente o mesmo padrão emerge […] no exemplo […] da Índia, onde até mesmo a riqueza adquirida pelos meios mais tortos, por mercadores, bandidos e reis, permanece aceitável, desde que uma proporção dela seja presenteada (gifted) aos brâmanes como parte do ciclo de longo prazo, da purificação. Novamente, constatamos que no Sri Lanka o dinheiro deixa de ser sujo e se torna um legítimo interesse das pessoas quando usado no consumo para manter a solidariedade e identidade de classe da vila de pescadores e para reproduzir a família […].

O que encontramos sistematicamente, portanto, é uma série de procedimentos pelos quais os bens que derivam do ciclo de curto prazo são convertidos na ordem transacional de longo prazo — procedimentos que incluem o ato de ‘beber’ dinheiro, no caso da Ilhas Fiji, ‘cozinhar’ o dinheiro em Langkawi, a ‘digestão’ das dádivas dos peregrinos pelos brâmanes de Benares.”

Os autores ainda ressaltam que em todos os casos estudados “os dois ciclos são representados como organicamente essenciais um ao outro”. E acrescentam (p. 26):

“O que acreditamos ser ilustrado por nossa discussão […] é que todos esses sistemas criam — na verdade têm que criar — algum espaço ideológico no âmbito do qual a aquisição individual permanece uma finalidade legítima e até mesmo louvável; mas que estas atividades são consignadas a uma esfera separada, ideologicamente articulada com, e subordinada a, uma esfera de atividade preocupada com o ciclo de reprodução no longo prazo.”

Porém, os autores advertem sobre a “possibilidade de que o envolvimento individual no ciclo de curto prazo se torne um fim em si mesmo” (pp. 26-27). E prosseguem em sua advertência, sugerindo que provavelmente “a ideologia ocidental enfatizou tanto a distinção entre os dois ciclos que […] tornou-se incapaz de imaginar os mecanismos pelos quais eles são ligados” (p. 30).

As discussões e advertências da Antropologia econômica, referidas acima, sem dúvida oferecem matéria de reflexão para a AJPE. Parece claro que a ordem econômica global contemporânea, juntamente com suas conseqüências para as economias locais, se caracterizam pela ausência do equivalente ao “espaço ideológico” de articulação entre os processos de curto prazo e os ideais de longo prazo. Não existem os “mecanismos pelos quais eles [os ciclos de curto e de longo prazo] estão ligados”. Ou melhor, cada vez mais estes mecanismos são os mercados financeiros internacionais, que operam no curto prazo apenas, e em grande parte sem regulação pública. Com isto, prejuízos como a destruição do meio ambiente, que afetarão, no longo prazo, as gerações futuras, se acumulam. Com isto, também, a fome, a pobreza e o sofrimento na África e em vastos contingentes da população do mundo hoje, inclusive no Brasil, vão permanecendo sem solução.

Possivelmente, com o avanço da interatividade social por meio das tecnologias da informação e suas conseqüências sociais e institucionais, a AJPE, preocupada em articular a proteção aos direitos constitucionais em cada sociedade com a dos direitos humanos a partir do plano internacional, poderá contribuir para estruturar tal espaço de valores, moralmente relevantes, que sejam dinâmicos em seu conteúdo e alcance, mas sirvam para prevenir que a política econômica permaneça como um conjunto de formulações completamente divorciadas da sensibilidade sobre o que deve ser considerado justo e injusto no mundo e nas diversas comunidades que o compõem.

Fonte: economialegal.wordpress.com

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