Índios mantém cultura mesmo depois de contato com "brancos"

Erika Morhy
diadema

Mais de 60% das 144 peças da Coleção Etnográfica Xikrín do Cateté, contidas na reserva técnica do Laboratório de Antropologia da UFPA, ainda têm valor de uso nas duas aldeias da tribo no município de Parauapebas (sudeste do Pará), mesmo depois de terem se passado quatro décadas desde que os objetos foram coletados pelo antropólogo Protásio Frikel. Para a também antropóloga Rita de Cássia Domingues-Lopes, 26, que fez da pesquisa sua dissertação de mestrado na universidade, o índice é ainda mais surpreendente por conta do intenso contato que esses povos mantém com os não-indígenas, seja por estarem situados na área de influência da Companhia Vale do Rio Doce, seja por se deslocarem à cidade, ao Núcleo de Carajás ou a Marabá, onde se localiza a sede mais próxima da Funai.

As aldeias Cateté e Djudjê-kô são formadas hoje por mais de 800 pessoas, que têm a exuberância estética e o enfrentamento nas suas reivindicações como algumas de suas características mais marcantes, e que foram determinantes na escolha de Rita.
Entre os anos 2000 e 2002, ela procurou contextualizar os objetos da coleção, reconhecer seus sentidos e significados atuais, que, como explica, perdem-se no tempo quando os elementos são deslocados de seu ambiente original para serem postos em museus, onde são tomados como arte primitiva ou tesouros exóticos. “Então fui perceber os artefatos em seu contexto sócio-cultural e como cada um estava relacionado ao uso social atribuído por seus produtores e usuários. Fui também verificar se os artefatos da coleção ainda estavam sendo utilizados pelo grupo e como se dá essa utilização, Tentei ainda perceber o potencial atual de uso desses objetos”, detalha Rita.

Alguns artefatos idênticos foram encontrados pela antropóloga ou citados a ela pelos informantes e produtores das aldeias, outros, notoriamente tinham modificações, e outros ainda, nem na memória das pessoas foram identificados. “O Kruapu, que chamamos de diadema vertical e serve de adorno plumário para cabeça, é fortemente presente nas festas de iniciação dos homens da tribo. O Kê-krü, disco occipital usado para prender o adorno plumário na cabeça, também, mas eles já o produzem misturando materiais, como tampa de vasilha feita na cidade. Já os bonecos de palha das crianças foram substituídos por bonecas industrializadas, que são pintadas como eles o fazem nos corpos deles mesmos, assim como os cachimbos, agora parecidos com os usados na cidade”, exemplifica Rita. Ela diz ter percebido o intercâmbio entre as sociedades indígenas e as não-indígenas – “eles conseguem alguns de nossos objetos e dão um fim diferente daquele que nós damos” -, mas ressalta que as transformações na cultura material são comuns a todas as sociedades e nas aldeias não é diferente, independente de entrarem ou não em contato com a população urbana. “Agregam-se coisas, eliminam-se outras… Isso é inerente ao desenvolvimento das sociedades. Dizer por que sumiu é outro enfoque”, pondera.

disco

Outra ressalva que a antropóloga faz é quanto aos limites da memória dos seus informantes – que era estimulada pelo registro iconográfico (desenhos e fotos) da coleção, feito para compor o trabalho – e mesmo os conflitos entre as concepções dos pesquisadores e as dos indígenas. “Quando mostrei o desenho do cinto de couro de onça, por exemplo, meu informante, Pio-djô, não reconheceu, mas, quando mostrei a foto colorida, ele lembrou que o artefato já foi usado por guerreiros da aldeia. Também aconteceu de mostrar uma braçadeira e ele me dizer que era Kaiapó e não Xikrín. Para nós, eles são classificados como um subgrupo Kaiapó, mas para eles não há essa referência”, diz Rita. Ela explica que alguns adornos são específicos de determinadas festas e rituais. Como só chegou a participar de uma delas – a Merêrêméi, de iniciação masculina -, é possível que ainda os encontrasse mais tarde.

Quanto aos artefatos de uso diário, Rita se deparou com restrições no diálogo com as mulheres, por exemplo. “Só os homens falam português nas aldeias e eu ainda não conseguia conversar bem na língua Jê, para falar com as mulheres, com quem eu tinha de passar mais tempo por ser mulher também”, esclarece. Aos poucos foi conseguindo não só conversar melhor, mas também ter mais entrosamento no contato com o grupo e descobrir objetos que normalmente não ficavam muito expostos. “Tinha visto algumas plumagens serem guardadas em saco plástico e só bem mais tarde cheguei a encontrar, uma só vez, na casa de uma família, o cesto natural (patuá) em que antes era mais comum o grupo acondicionar as plumas”, conta.
cinto

Para a antropóloga, ela pôde demonstrar o que os Xikrín do Cateté mantém enquanto tradição e elementos da cultura tradicional e possibilitou que se produzisse o registro iconográfico da coleção e a descrição museográfica das peças (feita a partir da observação dos objetos em si e do desenho deles). Rita acredita ter feito, também, uma classificação mais fiel das peças: “Foram descobertas fantásticas, porque pude conferir na própria aldeia o que tinha no catálogo de referência [As coleções etnográficas da Universidade Federal do Pará] e perceber as incompatibilidades, mesmo as mais sutis; também aconteceu de ter o nome da peça, mas a literatura não descrever como elas eram usadas”. Para Rita, fica ainda mais uma indicação: “mostramos que é possível fazer contextualização de coleções etnográficas no Pará. No nosso laboratório, por exemplo, ainda existem outras 12 coleções só de grupos indígenas, passíveis de estudo”.

SERVIÇO

Desvendando significados: contextualizando a Coleção Etnográfica Xikrín do Cateté, de Rita de Cássia Domingues-Lopes – Dissertação (Mestrado), Universidade Federal do Pará, 2002.

Pode ser encontrada nas bibliotecas:

Central / UFPA;
Setorial, do Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFCH) / UFPA;
Núcleo de Altos Estudos da Amazônia (Naea) /UFPA;
Museu Paraense Emílio Goeldi.

www.ufpa.br

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