Resenha: (Edição no. 52) Livro: A fluidez da forma: arte, alteridade e agência em uma sociedade ameríndia(kaxinawa)

Autora: Els Lagrou
Editora Topbooks
Número de Páginas: 566

O belo livro de Els Lagrou navega sobre o mundo da arte Kaxinawa, brindando o leitor com uma gama de materiais e reflexões originais que transcendem, seguramente, a realidade local.

Ao longo de sua trajetória como pesquisadora de temáticas relacionadas à antropologia da arte, das imagens, dos objetos, das emoções, do xamanismo e das filosofias sociais ameríndias, abordadas com maestria por meio da observação e análise da experiência dos Kaxinawa, Lagrou – atualmente professora do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia (PPGSA), IFCS/UFRJ – também é autora de diversos artigos publicados em revistas e livros no Brasil e no exterior.

Leitura imprescindível para os antropólogos que trabalham e refletem sobre a arte e seus elementos materiais e imateriais, a obra demonstra o rendimento cognitivo da forma, tanto para os Kaxinawá como para a antropologia da arte e etnologia, na medida em que as imagens materializadas podem ser encaradas como objetivações de relações. Com efeito, ao longo dos cinco capítulos a autora se dedica à revisão das teorias antropológicas sobre a arte e aos estudos etnológicos Kaxinawá por meio de uma etnografia detida das imagens presentes nos objetos e no cotidiano indígena.

Pintura corporal, grafismo e a estética da vida cotidiana – ilustrados com fotografias e desenhos da própria autora – constituem elementos que se interconectam para uma análise que dá sentido à forma e a identidade pessoal Kaxinawá.- povo de língua Pano cuja população é estimada em torno de sete mil indivíduos localizados em região de fronteira entre Brasil e Peru.

Discorrer sobre esse cuidadoso estudo, resultado de pesquisas realizadas há pelo menos duas décadas, requer que se exponha um conjunto das principais idéias nele desenvolvidas, ainda que “o que vemos”, para parafrasear a escritora francesa Anais Nin (1903-1977), não sejam apenas “as coisas como elas são” uma vez que aparecerão aqui filtradas por “como nós somos”.

Que força humana ou sobre-humana teria o poder de tornar fluida uma forma? Esta é, de fato, uma pergunta pertinente a se fazer aos Kaxinawa, mas não somente – é o que somos levados a pensar ao refletir sobre as complexas questões que este trabalho nos inspira. A profundidade da abordagem alcançada nas análises sobre a importância dos significados da arte no universo Kaxinawa acabam por nos remeter, de fato, para comparações e possibilidades de identidades e transformações em uma perspectiva bastante mais abrangente.

Desenvolvido enquanto pesquisa de doutoramento tanto na universidade escocesa de Saint Andrews quanto na Universidade de São Paulo, o texto dialoga frequentemente com autores como Joanna Overing e Cecilia McCallum, em uma perspectiva fenomenológica que apresenta os Kaxinawá entre seus “corpos pensantes” e imagens flutuantes, nos quais a identidade se relaciona à mimese e alteridade. Com efeito, segundo McCallum – autora de pesquisas sobre gênero e organização social Kaxinawa a partir de uma etnografia realizada na mesma localidade pesquisada por Lagrou -, observa-se, entre os Kaxinawa – como “o pensamento se encontra encorporado” e que “o conhecimento não apenas mora no corpo, mas se concretiza por meio dele”. Sendo assim, “as almas independentes desse corpo só podem surgir quando o corpo está em repouso ou enfraquecido (McCallum, 1996)”.

Ora, é exatamente nesse interjogo entre almas e corpo que a análise das formas dos objetos e imagens Kaxinawa se assenta, na medida em que se fixam ou se transformam, fluidas, representando extremo poder e perigo.

O primeiro capítulo, originalmente publicado como artigo em 2003, insere-se em uma discussão mais específica no âmbito da antropologia da arte[1]. O debate teórico com A. Gell (1998) sobre o poder da arte e da imagem de agir sobre o mundo é contextualizado ao longo de todo o estudo, uma vez que, segundo a autora, a fluidez da forma perceptível, para os Kaxinawa, constitui a base de sua agência e de seu poder – noção que, por sua vez, se articula à própria concepção de forma da pessoa, enquanto corpos pensantes. Nos dizeres da própria autora: “trata-se de pensar, por um lado, as relações corpos-pessoas e, por outro, aquelas entre corpo-pessoa e mundo” (LAGROU, 2006).

Uma vez encarados, animicamente, os objetos como pessoas, a proposta da autora se assenta na seguinte relação: assim como as pessoas são inseparáveis de seus corpos e pinturas – como já demonstravam Viveiros de Castro, Da Matta e A. Seeger (1979), em uma proposta com altíssimo rendimento para a etnologia sulamericana -, trata-se agora de demonstrar para os ameríndios como os demais objetos (artefatos) também estariam relacionados ao universo indígena e à pessoa.

A eficácia ritual do objeto artístico, ou seja, aquilo que lhe confere poder, é um dos aspectos que a antropologia da arte de A. Gell ressalta. Desta forma, “máscaras, ídolos, banquinhos, pinturas, adornos plumários e pulseiras” podem ser concebidos, segundo a autora, como projeção da socialidade sobre o mundo envolvente (p.49).

Todas essas viagens sobre o universo das imagens que atravessam corpos e poderes ganham sentido à luz da interpretação da mesma qualidade relacional e fluida que caracteriza a pessoalidade Kaxinawá, focada na luta pelo controle da forma, tal como se depreende do estudo do discurso sobre doença, morte, xamanismo, rituais, sempre atravessado pelo registro da estética.

Tendo em vista o background fenomenológico de sua análise, um dos principais objetos de atenção da autora seria o poder das imagens de criar e destruir as formas na vida Kaxinawa.

Os seres não humanos Yuxibu, definidos pela ausência de laços e raízes são responsáveis pela constante troca de fluidos e afetos, mas constituem grande ameaça para os Kaxinawá na medida que sua agência produz alterações nas formas nos outros seres com os quais interagem, inclusive humanos. (p. 26).

Os Yuxin, por sua vez, não possuem forma, mas puro desejo, a saber, o de se apossar de um corpo. Mais do que de um corpo, eles parecem desejos de transformação, o que representa extremo perigo por conduzir à mutilação das formas sólidas dos corpos humanos (p. 28).

O desejo representado pelos Yuxin constitui, no entanto, um perigo que estende a todas as socialidades, uma vez que a coerência do universo simbólico é sempre frágil e suscetível, devido a existência de desordens e violências nos corpos e nas relações.

Para controlar o desejo e seu ímpeto revolucionário e transformador em sua manifestação como Yuxin, as técnicas Kaxinawa se esmeram: os desenhos e a cozinha são concebidas pela autora, por exemplo, como técnicas femininas de fixação.

Com efeito, os desenhos nos corpos delineiam e ordenam; a comensalidade, por sua vez, constitui uma comunhão de corpos. No entanto, porque os corpos humanos continuam em seus eternos ciclos de troca de matéria e força vital, os Kaxinawa não logram vencer a batalha da fixação de fixidez.

Ainda que não constitua explicitamente intenção da autora remeter algumas ressonâncias de suas interpretações para além do universo indígena, tornou-se inevitável questionar comparativamente outros processos identitários, a partir de algumas categorias fundamentais para a cosmo-sociologia do povo enfocado, tais como a fixidez e fluidez das formas, o poder do desejo e suas ameaças.

Ora, a vitória do desejo sobre a “civilização” não parece um tema simplesmente Kaxinawa. Longe de almejar uma leitura psicanalítica da obra em tela, torna-se irresistível não aproximá-lo ao “mal-estar” que nos assola, por baixo da saudável e confortável ordem social, se levarmos em conta as reflexões de S. Freud a respeito do papel da civilização no controle das pulsões psíquicas mais profundas e ancestrais.

Nos demais capítulos, respectivamente intitulados: “Alteridade: a sedução do inimigo”; “Forma: os caminhos da cobra e do Inka” e “Fabricando corpos pensantes: Nixpupima”, Lagrou explora sua tese central por meio de uma etnografia detalhada da cosmologia Kaxinawa, demonstrando, assim, que suas divisões ontológicas seriam posicionais e temporais e que as diferenças não são situadas nesse universo em termos de oposição, mas de grau. A autora seleciona ainda mitos diversos que reforçam seu argumento de que as relações são formadas e transformadas pelas forças (agências) da fixidez e da fluidez, a saber, corpos, yuxin e yuxibu. Segundo a autora, a questão da identidade e da alteridade pode ser concebida sob o mesmo paradigma ontológico que divide o mundo em categorias relativas à fixidez e à fluidez, já que o “inimigo” ou “estrangeiro” seria considerado yuxin por seu desenraizamento e a ausência de uma morada fixa.

As imagens e desenhos exercem, assim, no universo pesquisado, o papel crucial de circunscrever o espaço e mapear as relações. Enquanto que para os homens as viagens xamânicas enquadram-se por meio de desenhos e molduras; para as mulheres, a tarefa de fixar formas é realizada nos desenhos dos artefatos e dos corpos.


[1] Trata-se do artigo “Antropologia e Arte: uma relação de amor e ódio”, Ilha. Revista de Antropologia, PPGAS/ UFSC, pp.93-113.


Referências bibliográficas

DA MATTA, R., SEEGER, A., VIVEIROS DE CASTRO, E. 1979 “A construção da pessoa nas sociedades indígenas brasileiras”. Boletim do Museu Nacional.
GELL, Alfred 1988 Art and Agency: an Anthropological Theory, Oxford, Oxford University Press.
LAGROU, Els. Rir do poder e o poder do riso nas narrativas e performances Kaxinawa. Rev. Antropol. vol.49 no.1 São Paulo Jan./June 2006, pp. 55-90.
MCCALLUM, C. 1996. “The Body that Knows: From Cashinahua Epistemology to a Medical Anthropology of Lowland South America”, Medical Anthropology Quarterly, 10(3): 347-72.
WAGNER, Roy. 1981. The Invention of Culture . Chicago & London: The University of Chicago Press.


(*) Izabel Missagia de Mattos é Professora Adjunta do Mestrado em Antropologia Social. UFG.

Atualizado em 23/11/09

Fonte: http://www.antropologia.com.br/

Leave a Reply

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *