UFPel – Diário de campo da viagem às Missões

Cátia Simone Castro Gabriel da Silva
Acadêmica do curso de Bacharelado em Antropologia Social e Cultural/UFPel.

Vou iniciar o meu diário em São Sepé, bem antes da parada pretendida, a “Região das Missões”. Agora são 5:40 e paramos em um posto de gasolina, Posto Cotrisel, pois o ônibus está com problemas no filtro e precisamos aguardar para o mecânico fazer o conserto.

Na viagem até aqui havia um estranhamento, na subida, o ônibus parecia que ia parar, na descida todo Santo ajuda. Porém, a escuridão, a chuva, os relâmpagos faziam aumentar o antrophological blue, traduzindo-se em uma aventura pela busca das origens históricas dos índios guaranis.

Ao amanhecer  na ida para Ijuí,  o ônibus descia uma serra e balançava muito, me senti em uma montanha russa, parecia que o freio era insuficiente, um susto, um solavanco. Nesta localidade existem muitos penhascos e se via a cidade lá embaixo. Mas felizes estamos indo em direção dos sítios arqueolólogicos e aos mbyas guaranis, passamos por um ônibus caído na beira da estrada, na localidade entre Júlio de Castilhos e Ijuí, onde duas pessoas estavam gravemente feridas, uma senhora que na hora do acidente estava no banheiro e outra grávida. Após alguns km encontramos um caminhão queimando, estava carregado com casca de arroz, a gabine queimou toda, os bombeiros apagaram o fogo e liberaram a pista às 8:30h. O dia está bom e estamos agora indo para o Sítio Arqueológico São João Batista, no atual município de Entre-Ijuís.

São 11:30 e acabamos de chegar no Patrimônio Cultural do Brasil, na antiga Redução de São João Batista, houve uma mudança no tempo e parece que irá chover. Foi aqui que aconteceu um dos fatos mais importantes para o impulso do desenvolvimento das Missões, a implantação da siderurgia, até então, qualquer ferramenta tinha que vir de lugares distantes. A descoberta do minério de ferro na pedra itacuru, ou pedra cupim, feita pelo padre Antônio Sepp, possibilitou às Reduções produzirem do sino à arma, do prego ao arado. São João Batista foi a primeira fundição de ferro e aço do Sul da América.

O prof. Claudio Carle, arqueólogo da UFPel, inicia a visita nos reportando ao passado, particularmente nos séculos XVII e XVIII, quando os padres jesuítas fundaram as Reduções, explicando que um excedente de índios guaranis foram transferidos da Redução de São Miguel Arcanjo para a de São João Batista, que possuiu uma população de mais de 4.500 índios.

Caminhamos em locais onde foram as casas dos índios, num terreno plano na frente da igreja. Este foi o penúltimo povo em extinção, as casas eram feitas de tijolos e no telhado caibros de madeira e telha de barro. O tamanho da casa dos índios era 5 x 3, fora o alpendre onde as pessoas mais permaneciam, cozinhavam e conversavam.

Ao redor da igreja e na frente ficavam as casas, ao lado direito era o cemitério e o azilo para as viúvas e órfãs, enquanto a esquerda estava a escola para as crianças, os homens aprendiam o ofício conforme o modelo capitalista imposto pelos jesuítas e o principal produto econômico era a erva-mate.

Os prédios principais ainda existem em ruínas e passamos pelo que naquela época era a rua principal. [A ruína da igreja dos jesuítas tinha três colunas que sustentavam os telhados, os tijolos eram feitos de argila, bem densos para não passar água.]

Os índios transportavam toda a terra da igreja para o fundo, então o colégio ficou mais alto (local da foto) e atrás destes dois prédios ficavam as plantações em um desnível abaixo, pomares, vinhedos e também experiências com plantas nativas. Neste sítio encontramos uma árvore de erva-mate e outra de urucum.

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Imagem 1. As pedras do que seria o colégio

Todos os horários eram marcados pelo sino da igreja, inclusive a hora da missa, onde o sermão era em guarani, porém a língua falada era o latim. Aqui era uma cidade e também precisavam de armas, então a armeria, por motivo de segurança, ficava próximo à igreja junto ao colégio.

Após a guerra da Guaratinica, que ocorreu em 1750, as famílias guaranis ainda ocupavam o lugar, permanecendo até os meados do século XIX.

O prof. Claudio Carle ainda comentou sobre as expulsões que ocorreram a partir da guerra e relacionando diacrônica e sincrônicamente com os guaranis que vivem hoje lá, apenas agora conseguindo o direito da terra.

Antes da saída fotografei o monumento histórico do fundador da Redução de São João Batista, o padre “Antônio Sepp”.

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Imagem 2. Monumento em homenagem ao padre Antônio Seep

Na chegada a cidade de São Miguel das Missões, avistamos a Cruz de Lorena, representando o símbolo do cristianismo jesuítico.

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Imagem 3. Cruz de Lorena na entrada da cidade

Na visita ao Sítio Arqueológico de São Miguel Arcanjo, senti que cada pedra não só nos transportava ao passado, mas também reportava ao valor histórico do lugar, preservado em memória dos que ali viveram em épocas passadas. Hoje essas histórias fomentam o progresso turístico da Região.

Neste lugar estão reunidos testemunhos de uma experiência de vida singular, as pedras, as imagens barrocas em madeira policromada, os sinos, o solo ondulado que revela a marca de casas indígenas, as ruínas da igreja e de outras edificações da antiga Redução, são vestígios pelos quais podemos imaginar o cotidiano missioneiro.

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Imagem 4. As ruínas da Redução de São Miguel Arcanjo

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Imagem 5. Santo Antônio de Pádua

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Imagem 6. Nossa Senhora Aparecida

Esculturas barrocas feitas pelos guaranis da Redução de São Miguel Arcanjo, nas missões jesuítas. Pode-se notar que as mãos e outras partes estão mutiladas, marcas deixadas pelos exércitos invasores, portugueses e espanhóis.

Um incêndio queimou a estrutura de madeira, o encaixe das paredes de pedra, é o que faz  a igreja estar de pé até hoje, juntamente com uma restauração feita pelos guaranis. Na torre da catedral de São Miguel se avistava a rosa dos ventos, o pátio era todo coberto, um sistema de calhas transportava a água pelo subsolo indo direto para a quinta de frutas.

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Imagem 7. A torre da Catedral da Redução de São Miguel Arcanjo

Um piso cerâmico constituía todas as construções, a cozinha possuía uma cavidade onde se localizava a adega, e o passa prato constituía o único contato do cozinheiro com os padres. No espaço ao lado da cozinha existiam várias salas onde os artesões trabalhavam em seus ofícios transmitidos pelos estrangeiros. Os ourives eram controlados pelo fato do ouro e a prata serem muito caros.

Os pedaços do telhado de barro podem ser vistos por toda a parte, a hospedaria ficava na parte inferior ao lado das salas de ofícios, dizem que era para proteger os guaranis dos visitantes brancos.

Aldeia Alvorecer – Tekoa Koénju

No 20 de junho de 2010, dia bonito com sol e pouco frio, partimos do hotel Barichello em direção a Aldeia Alvorecer, onde o cacique “Ariel” e os mbyas nos aguardam.

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Imagem 8. À esquerda Cátia e na direita Letícia indo em direção à Aldeia Alvorecer.

Como já dizia Malinowsky, temos que ir a campo para conhecer a cultura do outro. A recepção ficou a cargo do vice-cacique, onde falou que ali vivem em torno de 35 famílias, às vezes aumenta a população e depois por motivo de mudanças diminui. Pediu para nos dirigirmos à Casa de Cultura feita por brancos, com o formato de um tatu, e aguardarmos o cacique Ariel. Nenhuma foto foi possível ser tirada antes que o cacique chegasse e permitisse.

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Imagem 9. Aldeia Alvorecer – Tekoa Koénju

Dentro da casa de cultura o Ariel comentou que aquele lugar é destinado a reuniões, também estavam no centro da sala, objetos da cultura material; um violino em processo de confecção, às varinhas usada pelos xamãs – popyguás entre outros objetos.

Na aldeia, a escola de ensino fundamental foi criada em 2003, a esposa do Ariel é a única professora bilíngue, existem discordâncias culturais relativas a educação que as professoras ensinam na escola e a que as crianças aprendem por endoculturação em casa com os pais, avós e outros. As crianças aprendem em casa o fenômeno da chuva relacionado com os mitos guaranis, e na escola as professoras ensinam dentro dos padrões culturais dos livros. Então as crianças chegam em casa e dizem aos familiares que eles mentiram, ensinaram tudo errado, pois na escola a professora explicou diferente.

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Imagem 10. Eu e meus novos amiguinhos, os indiozinhos mbyas guaranis.

A merenda também é causa de divergência entre a escola e os pais, pois as crianças acostumadas com o espírito de coletividade, querem repartir com seus amiguinhos ou parentes aquilo que receberam na hora da merenda. Porém no pensamento das merendeiras isto não pode acontecer, ficando elas bravas com as crianças.

Com relação a alimentação, os mbyas utilizam mandioca, milho, feijão e também alimentos industriais. Se não tem muito tempo, fazem pequenos roçados para plantar e garantir a semente para o ano seguinte. Em agosto fazem um ritual na opy para purificar as sementes, para serem plantadas em setembro.

A casa de reza opy, no momento que fizemos a visita, estava sendo construída, por enquanto esta sendo utilizada uma pequena opy, que é de uma família, nela são celebrados batizados, casamentos e orações. Também na casa de reza, os noivos recebem orientações dos mais velhos sobre como viver a dois, conforme a cultura guarani. Depois tem que morar com a sogra de três a cinco anos, até a família da moça ter certeza de que não irão se separar.

Na opy, são levadas as pessoas doentes para consultar com o xamã, antes mesmo de irem a um médico ou hospital,  só a partir da indicação do guia espiritual é que procuram atendimento hospitalar ou ambulatorial. Caso contrário é curado com a medicina xamânica e com ervas medicinais. No entanto, na aldeia existe um posto de saúde, onde médico, dentista e enfermeira atendem três vezes por semana. Porém há discordância no pensamento do médico e dos mbyas, pois para o médico, uma criança não pode andar descalça, mas para os ameríndios é natural, faz parte da cultura deles. Em outro caso, o médico acha que uma criança esta anêmica e desnutrida, mas para os mbyas não.

As casas e a opy possuem suas portas direcionadas para o pôr do sol. As casas tradicionais são feitas de taquara barreadas nas laterais e o telhado é confeccionado com bambú e palha, estas moradias são reservadas aos mais velhos. Dizem que morando nessas, estão protegidos pelos Deuses. Já as moradias dos casais novos, o governo vem construindo as laterais de madeira tipo costaneira e o telhado com caibros e telha de barro.

O cacique Ariel nos explicou muitas coisas sobre a cultura guarani, inclusive a maneira que as meninas e os meninos são tratados assim que surgem os primeiros sinais biológicos da adolescência, onde passam a ser vistos não mais como crianças, quando passam a poder ter filhos e formar uma família, precisando saber as suas responsabilidades.

Iniciou contando-nos que quando ele era criança, notava que suas irmãs as vezes desapareciam e era proibido perguntar o que tinha acontecido a elas. E isto se dava devido ao primeiro ciclo mestrual, onde as mbyas fazem um resguardo de 15 dias e tomam banhos de ervas. Após, nas outras mestruações elas precisam se abster de carne, sal e frituras. Já na fase adulta, a mulher avisa ao marido que esta mestruada, por que neste dia ela não pode cozinhar, lavar roupas, plantar, etc., cabendo a ele as tarefas que antes eram dela. Pois aos homens na divisão do trabalho, cabe as funções de fazer esculturas em madeira, caçar, pescar, melar abelhas, etc, numa configuração diacrônica e sincrônica com os guaranis missioneiros.

E quando a mulher está grávida e o bebê vai nascer, o homem também descança. Dentro da barriga, o filho já sabe tudo o que acontece com a família e após o nascimento se for menino, o pai faz um arco-flecha e se for menina a mãe faz uma cestinha. O pai fica fora de casa três meses para vender artesanatos, o objeto  confeccionado irá transmitir à criança a figura do pai acalentando a saudade.

A criança revela o seu nome para o xamã através de sonho. Se ao chegar a idade dela entender o que significa, e notar que o seu nome é motivo de risos e chacotas, então vai novamente ao xamã e pede para ele trocar.

Em algumas aldeias guaranis (não o caso desta), ainda há o infanticídio, que é a morte por inanição das crianças que nascem deficiêntes ou gêmeas. Nesses casos, só a família fica a par do que está acontecendo, os pais e os avós; o resto da aldeia não. Os mbyas acreditam que esta criança poderá trazer complicações para a família. Acreditam eles que o motivo deste nascimento, foi porque o pai ou a mãe cometeram adultério. Na aldeia não existe cemitério, ele fica na cidade, porém pensam em construir um na aldeia, pois os mais velhos dizem que os mortos devem ficar num lugar com sombra, já que o cemitério na cidade tem muito sol.

A iniciação dos meninos acontece quando os pais notam a mudança na voz, então furam-lhe o lábio e enfiam uma palhinha fina, para a partir dali por motivo da dor, ficarem calados e ouvirem mais, principalmente os mais velhos e consequentemente aprenderem a cultura; fazer chimarrão para o pai, buscar lenha para a mãe e até mesmo para a futura sogra, pois esta é a forma de dizer a ela que estão apaixonados pela sua filha. Além disso os meninos tem que agradar também o sogro, então precisa contar boas piadas e também precisa ter ombros fortes, isto é sinal de força e resistência física.

Os guaranis são exogâmicos e muitas vezes é necessário os homens irem em outras aldeias para encontrar o seu par, as mulheres ficam na aldeia aguardando. Foi o caso do Ariel que veio do Salto do Jacuí para conhecer sua esposa aqui em São Miguel das Missões, onde é professora, e era filha do antigo cacique. O cacicado é herdado, porém quando o cacique faleceu, só tinha filhas mulheres, então o esposo da filha mais velha adquiriu o cacicado.

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Imagem 11. A trilha na mata e junto esta Basílio, músico mbya

Foi nesta trilha que o cacique Ariel nos deu a maior parte de sua entrevista, o passeio representou uma renovada nas energias, sem contar o conhecimento da cultura ameríndia que nos foi passada.

Fomos até o Rio Vermelho, pisamos sobre uma grande rocha de itacuru, pedra ferro, muito encontrada na região, pude percebê-la em vários lugares com formatos e tamanhos diversos, soltas ou enterradas no solo.

Desde cedo todos aprendem a ter respeito pela natureza, pois sabem que é dela que sai o remédio, alimento, sementes e a taquara para os artesanato. Buscam sempre a proximidade com os rios para possuirem uma boa água para beber, cozinhar, tomar banho e a agricultura.  A natureza é muito importante para eles, pois sabem que é ela que possibilita a sua subsistência.

Outro aspecto observado foi a questão do coletivo, que desde antes da chegada dos europeus jesuítas, os guaranis já possuiam esta característica, onde tudo é para o coletivo, apesar de eu ter notado que cada família tem o seu próprio galinheiro, a sua horta, produzem e vendem os seus próprios artesanatos, mas quando há excedentes, distribuem-se entre si. O kula, os alimentos não perecíveis, roupas, calçados que nós levamos a eles foram distribuído entre todos.

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Imagem 12 – Grupo de cantores Jero Dhi Guarani

É através da cosmologia que as sociedades demonstram a sua cultura, utilizando as artes para esta representação, como é o caso dos índios estudados, onde os meninos e meninas músicos através da dança e do canto, representam e divulgam a cultura dos mbyas guaranis. Na imagem 12, aparece a apresentação do grupo de cantores Jero Dhi, em frente à Casa de Cultura. Os cantos são na língua nativa guarani. Os meninos fazem um movimento com os pés e as meninas fazem outro, representando as águas, pois os guaranis são denominados “Povo das águas”.

O tekoa fica nas proximidades de um assentamento, onde o contato interétnico com os moradores locais: alemães, italianos e poloneses são de respeito e amizade.

Quando estávamos indo embora, o Ariel nos levou por um atalho, passamos por três casas e aprendemos com ele a dar boa tarde em guarani, Nhandekaarú ju! Tivemos o prazer de conhecer o ancião da aldeia, o Sr. Cantalício, e em guarani Kuaray Nhe´êry, 85 anos. Na cultura guarani o homem pode matar só quatro onças, mas por motivo de sobrevivência o Sr. Cantalício teve que matar a 5ª onça, pois estava no mato com a filha pequena sentada vendo ele cortar lenha. Para eles, se matar mais que quatro onças, o espírito do animal fica na volta deles.

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Imagem 13- O cacique Ariel e o Sr. Cantalício

O cacique disse que sabíamos fazer as perguntas, éramos diferentes dos turistas que iam no Sítio São Miguel Arcanjo, os quais faziam perguntas impróprias, só faltava perguntar se ele era um ET.

Explicou-nos a importância para os guaranis, da boa oratória, pronunciar palavras certas e belas, procurando não magoar e ser entendido por todos.

4 comments

  1. Olá Cátia. Muito interessante o seu relato. Gostei mesmo. Apenas para complementar , uma informação que pode não ter muita importância para você , no momento, mas para mim tem todo um significado. Aquele monumento ao Pe. antonio Seppe, foi Léo Rockencabh ( já falecido), quem desenhou, para ser posteriormente esculpido. Ele foi um grande amigo e meu sogro, em Santo Ângelo, na década de 80. Um grande abraço. Luiz Borges.

  2. Olá Luiz Borges! Obrigada por sua informação, fico muito feliz em saber que gostam das minhas postagens. Abraço, Cátia Simone da Silva.

  3. Oi Catia preciso muito da tua informacao emcontrei esculpido em uma pedra a cruz de Lorena a ums 50 anos que conheco este lugar tem duas emorme pedra uma encostada na outra e uma menor em baixo e em uma delas esta esculpido a cruz de Lorena e um luguar no alto de um morro limpo e muito lindo o que significa me responda por favor obrigado

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