Os povos do Parque reconhecem a interferência de uma multiplicidade de seres espirituais na vida dos humanos. Há uma profusão de espíritos, desde os de plantas, peixes, animais de pêlo, estrelas, objetos, até os mais importantes, associados às flautas proibidas às mulheres e ao ritual feminino do Yamuricumã. São os espíritos que causam a maioria das doenças, ao aparecerem para os humanos na floresta, e são eles que ajudam os xamãs a curá-las. Os espíritos são invisíveis, só aparecendo para os doentes e os xamãs em transe.
Os seres espirituais estão usualmente em toda parte, menos dentro da aldeia, onde surgem apenas em situações extraordinárias de doença, xamanismo e ritual. Sua relação com os humanos ocorre em bases predominantemente individuais, sob a forma básica da doença. Consideram que todas as doenças decorrem de um contato com o mundo sobrenatural, seja pela atuação de um feiticeiro ou pelo encontro acidental com um espírito.
Para efetuar a cura, o xamã contata o espírito causador da doença por meio de um transe estimulado pelo uso de grandes cigarros de tabaco. Geralmente, a cura se dá pelo sopro de fumaça sobre o doente, ou pela retirada do feitiço, ou ainda pela identificação do espírito que foi induzido pelo feiticeiro a entrar no seu corpo.
O xamã, assim, exerce o controle das relações entre a aldeia e o mundo sobrenatural: ele regula as relações entre homens e espíritos que habitam as águas e a floresta; através de seu diagnóstico, os espíritos causadores de doenças são socializados pelo ritual. O feiticeiro, por sua vez, representa o paradigma do ser marginal: é o homem da porta traseira, que invade as casas, que coloca feitiço nas roças, que se transforma em animal no mato. Na maioria dos casos, os principais suspeitos de feitiçaria são habitantes de outras aldeias ou oriundos de outras etnias.
No Alto Xingu, o indivíduo curado passa a estar em dívida com o espírito que causou/curou a doença. Ele deve então patrocinar uma cerimônia em que homenageia o espírito por meio de cantos, danças e adornos corporais. Essa cerimônia é o momento em que o grupo doméstico distribui comida a toda a aldeia. O espírito é encarnado-representado pela comunidade, e ambos são alimentados pela família do doente.
A doença, portanto, não pode ser tomada como um mal absoluto, ou não é apenas isso. Grande parte do sistema ritual alto-xinguano é acionado por idéias vinculadas à doença e o circuito de reciprocidade ativado por essas cerimônias tem uma papel crucial na dinâmica social das aldeias, fazendo a mediação nas relações entre indivíduo e sociedade (Viveiros de Castro 2002:81).
Fonte: pib.socioambiental.org/pt/povo/xingu/1551#