Indígenas têm medo da floresta urbana

Terça-feira, 17 de agosto de 2010 (ALC) – O cacique Ari indagou pelos motivos das mulheres da comunidade kaingangue da Lomba do Pinheiro, em Porto Alegre, “estarem se entristecendo”, ao constatar a quantidade de medicamentos antidepressivos distribuídos a elas pela Fundação Nacional de Saúde (Funasa).

A história foi relatada pela psicóloga Bianca Sordi Stock, no encontro promovido pelo Instituto Humanitas, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), na quinta-feira, 5 de agosto. “Os povos indígenas hoje vêm enfrentando problemas novos em função da maior aproximação com a sociedade envolvente”, disse.
Ainda assim, a psicóloga confessou que não se sente a vontade para falar em saúde mental dos povos indígenas, pois trata-se de um conceito que não faz parte das cosmologias ameríndias.
“Os povos indígenas sofrem de problemas ligados às emoções e comportamento, de ordem subjetiva, no entanto, sentem e significam de maneiras diferentes. Isso faz toda a diferença nos modos de cuidado, de promover a saúde”, explicou Bianca.
De fato, a própria comunidade kaingangue da Lomba do Pinheiro tratou de encarar a “tristeza” das mulheres. Liderada pelo cacique, equipe interdisciplinar, da qual Bianca faz parte uma vez que acompanha a comunidade desde 1999, prescreveu a receita: incrementar a convivência.
Às segundas-feiras, dia de folga, quando todos estão na aldeia depois de trabalharem no final de semana na venda de artesanatos na capital gaúcha, a comunidade passou a valorizar costumes ancestrais, como o preparo do bolo na cinza, do pão, também de pratos copiados dos brancos, como a macarronada e a feijoada.
Foi retomada a tradição de sentar em roda, comer juntos, e contar histórias. “Isso para nós é saúde mental”, apontou o cacique. A psicologia, arrolou Bianca, tem uma dívida para com povos autóctones. Apenas em 2004, procurada por 30 caciques de nações indígenas, o Conselho Federal de Psicologia debruçou-se sobre os problemas que trouxeram: como poderiam receber ajuda no combate ao alcoolismo e abuso no consumo de substâncias químicas, como psicotrópicos.
Reunião idêntica promoveu o Conselho de Psicologia do Rio Grande do Sul com lideranças indígenas da Região Metropolitana de Porto Alegre. Caciques apontaram que o foco principal de atuação dos psicólogos deve centrar-se no auxílio para que possam lidar com os problemas decorrentes do preconceito e da violência velada que sofrem no contato mais intenso com a comunidade envolvente.
E quais são alguns desses problemas? Indígenas sentem-se rechaçados no ônibus por terem cheiro de fumaça, vêem o desgosto estampado na cara das pessoas nas feiras da capital onde vendem seus artesanatos, sentem o atendimento inadequado que recebem nos postos de saúde.
Bianca considera importantíssima essa primeira recomendação das lideranças, “pois coloca em questão a qualidade das relações que vêm estabelecendo com a cidade, com as outras culturas, com as instituições governamentais.”
A cidade assume o simbolismo de uma floresta para esses povos. Na cultura kaingangue, a solidão é patológica. O guerreiro kaingangue não entra sozinho na mata. A solidão é perigosa, e ele pode morrer de susto. Os kaingangue têm outro jeito de lidar com os medos, diferente da herança das culturas européias.
Entrar sozinho na floresta urbana também é perigoso, pois o kaingangue corre o risco de ser engolido por toda a oferta que a comunidade envolvente e a sociedade capitalista oferecem.
O que mais preocupa, de uma forma geral, as lideranças indígenas de momento são os casos de uso abusivo de bebidas alcoólicas, baixa auto-estima, suicídio, violência e o aumento do uso de medicamentos, relatou a psicóloga, que também é professora na Unisinos e na Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
A psicologia construiu, ao longo da sua história, ferramentas para lidar com esses desafios, assim como as populações indígenas têm as suas próprias ferramentas.
“O mais rico desses encontros é podermos habitar os paradoxos, ocupar o espaço entre a interlocução de saberes”, definiu. Bianca entende que a psicologia tem muito a aprender com a convivência nas comunidades indígenas e com o perspectivismo ameríndio.

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